terça-feira, 23 de setembro de 2008

Sobre o ler e o escrever no século XVI em Portugal

Luís de Camões (c.1524-1580):
Trovas a uma dama que lhe mandou pedir algumas obras suas

Senhora, se eu alcançasse,
no tempo que ler quereis,
que a dita dos meus papéis
pola minha se trocasse;
e por ver
tudo o que posso escrever
em mais breve relação,
indo eu onde eles vão,
por mim só quisésseis ler;

despois de ver um cuidado
tão contente de seu mal,
veríeis o natural
do que aqui vedes pintado.

Que o perfeito
amor, de que sou sujeito,
vereis áspero e cruel,
aqui com tinta e papel,
em mim co sangue no peito.

que um continuo imaginar
naquilo que amor ordena,
é pena que, enfim, por pena
se não pode declarar;

que se eu levo
dentro n'alma quanto devo
de trasladar em papéis,
vede qual milhor lereis:
se a mim, se aquilo que escrevo.

(In Luís de Camões, Lírica Completa I, organizada por Maria de Lurdes Saraiva. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1980)


André Falcão de Resende (Évora, 1527 – Lisboa, 1599)
[sobre a escritura de Sá de Miranda]:

Quem não louvará muito em toda hora
o Sá de Miranda, nunca assás louvado,
d'engenho, estudo, estilo alto e apurado,
e sobretudo tão ditoso agora,

Que é do puro alabastro assim, senhora,
de vossas delicadas mãos tocado,
dessa voz doce ora pronunciado,
no seio d'alva neve posto outr'ora?

Pirâmides, sepúlcros sumptuosos
edifícios, que em fim o tempo gasta,
tanto sem fim não fazem sua memória,

quanto a luz desses tão fermosos,
que graça e vida dar a tudo basta,
e a mim dão vida e morte, pena e glória.

In: Américo da Costa Ramalho, O essencial sobre André Falcão de Resende. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2004.

Esta postagem, rara leitora, só foi possível graças às indicações de Marcia Arruda Franco, professora de Literatura Portuguesa da Universidade de São Paulo (USP), organizadora do número II/4 de Floema, Caderno de Teoria e História Literária, da UESB, dedicado a Sá de Miranda. A ela, nosso agradecimento.

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