domingo, 16 de março de 2008

Um livreiro singular, por Salim Miguel

Costuma-se repetir que a paixão do livro se sustenta em dois pólos: o autor e o leitor. É um equívoco. Junto a eles estão o editor, o gráfico, o distribuidor, o divulgador, o bibliotecário, o bibliófilo, o livreiro – nesta ou na ordem que desejarem.

Se me pedissem para apontar um livreiro singular, eu não titubearia um segundo: Odilon Lunardelli.

Tenho vaga lembrança dele trabalhando nos Correios, onde também trabalhava D. Rita, minha sogra. Em 65, devido ao golpe militar, mudei-me para o Rio de Janeiro. Nas esporádicas vindas a Florianópolis, tomei conhecimento das novas atividades do Odilon, que saía, com seu carro atulhado de livros, tentando vendê-los pelo interior do Estado. Daí para a livaria, um pulo. Mas foi a partir de 1979, com meu retorno para Florianópolis, que nosso relacionamento se estreitou. Passei a encontrá-lo regularmente. Um ponto nos aproximava mais: eu também havia sido livreiro, na década de 50. Antecipo dois fatos estranhos: jamais entrei na outra livraria dele e depois que morreu não voltei à livraria da Victor Meirelles, nem creio ter cruzado a rua.

Como todo livreiro que se apaixona pela profissão, Odilon Lunardelli devia ter muito o que contar. Recusava fazê-lo, mesmo em papos informais. Provocado, soltava-se, para logo se fechar. A fim de incentivá-lo, narrava-lhe episódios de minha frustrada experiência. Várias vezes eu vira conhecidos e/ou amigos furtando livros; envergonhado, deixava-os levá-los; ou a história de um apaixonado por viagens, comprava tudo que aparecia, encomendava outros, até em idiomas que desconhecia. Um dia se animou, integrou-se a uma excursão que ia a Salvador. Abandonou-a pelo meio, voltou correndo para me dizer que nada o interessara naquela velharia que tantos elogiavam – e encomendou-me livros sobre Salvador.

Tudo em vão. Odilon não se rendia. Ria-se, fumava, tomava outro cafezinho, folheava um livro, atendia o telefone.

Faz pouco, animado pela leitura de Memorias de um librero [Madrid: Anaya & Mario Muchnik, 1994], do argentino Hector Yánover, reli o livro de Herbert Caro, Balcão de livraria [Rio de Janeiro: MEC-Serviço de Documentação, 1960] . Em ambos, passagens pitorescas. Herbert Caro, que se tornaria importante tradutor, conta que certo dia duas meninas-em-flor buscavam um livro para presentear o namorado de uma delas. Não se decidiam, até que a outra disse: “Ele já tem UM livro, por que não lhe dás outra gravata?” Já Yánover conta de um senhor que entrou na livraria e foi logo dizendo que vinha em busca do livro El rosal de las ruinas. Eis o trecho em espanhol: “Quando se lo alcancé, lo hojeó con cierta desconfianza y me dijo: – No. Este no. Quiero un libro. – Es el que usted me pidió. – No! Usted no me entiende. Yo quiero un libro y éstos son versos! Um libro para leer. No versos.”

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Rara leitora, leia o texto integral de Salim Miguel nos Arquivos do Grupo do Google Cultura Letrada, coordenado por este blogueiro. Clique aqui:
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Este texto está no volume Nosso homem do livro: Odilon Lunardelli, depoimentos. Org. de Francisco José Pereira. Florianópolis: União Brasileira de Escritores de Santa Catarina, 1999, p. 67-70.
Salim Miguel é um escritor, premiadíssimo, e editor catarinense. Um dos criadores da revista Ficção. Conheça mais: Memória de editor, com Salim Miguel & Eglê Malheiros. Dorothée de Bruchard, org. Florianópolis: Escritório do Livro ; Imprensa Oficial do Estado de Santa Catarina, 2002. 93 p.

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