sábado, 22 de março de 2008

Páscoa, por Fidelino de Figueiredo

Rara leitora, ainda explorando recente aquisição bibliográfica no acervo de Miguel Freitas Pereira, recorro a um outro texto de Fidelino de Figueiredo (que infelizmente muito recorto) para registrar a passagem da Páscoa. As suas recordações lembram outra Páscoa, das amêndoas confeitadas, mais próxima de minha infância do que da Páscoa que vivo hoje com seus coelhinhos, colombas italianas e ovos de chocolate, que, sendo dos bons, meio amargos, adoro.

E a sua Páscoa, querida leitora, caro leitor? Que seja o início de um novo ciclo tão ou mais feliz que o que se encerra, neste simbólico renascimento cristão.


(...) Tanto quanto posso recuar nas minhas recordações, a Páscoa para mim associa-se a uma das principais emoções da liberdade. Era o tempo em que meu pai, com uma pontualidade austera de dever, distribuía a todos da família, todos os anos mais numerosa, velhos e novos, próximos e afastados, um grande cartucho de amêndoas. O confeiteiro já contava, na sua fabricação, com aquele consumidor principesco. E eu podia, nessa tarde, crendo iludir a vigilância materna, dar-me à gula mais voraz até que, saciado e cansado, adormecia com boca lambuzada e o meu tesouro prodigamente entornado pelo chão.

Mais tarde a Páscoa teve rescendentes anunciadores: as violetas que por toda a parte negrejavam e embalsamavam o ar; as olaias, as árvores caprichosas que florescem antes de reverdecer; e esses misteriosos filtros noturnos, trescalando de dentro de altos muros herméticos e romantizando a imaginação...

– Ela aí vem a boa Páscoa! E os velhos da família, vendo findar a dura prova do inverno, cobravam novos alentos, sucessivamente, até ao instante em que, desiludidos desse paralelismo, foram vendo que na vida há só uma primavera: “E tudo mais renova, isto é sem cura!”, já lamentava Sá de Miranda.

Era a chegada de prazeres castos e de novidades que mudavam o sinal e a expressão ao giro cotidiano. Primeiro, essa ostentação luxuosa, pelos talhos e confeitarias, de tudo que fora proibido durante a quaresma: as mais opulentas viandas a esmaltar um grande fundo verde-negro de folhas de louro, do teto pendentes festões de flores variegadas, de papel, nos mostradores a graciosa arquitetura de uma cenografia. E eu já conhecia de ano para ano os lugares comuns dessas decorações: aqui o comboio que incansavelmente transpunha uma ponte e que eu um dia descobri que era sempre o mesmo em movimento circular; acolá um preto que revirava os olhos e me negaceava com um pau de chocolate, e que eu via envelhecer em seu pontual automatismo de cartão; adiante uma Torre Eiffel, que não era de açúcar, era de gesso que se esboroava... Era o bruxolear do espírito crítico na sua primeira função, matar as ilusões.

As tardes, já mais longas, acrescentavam aos dias umas horas deliciosas; e minha mãe, nas narrativas com que me entretinha a imaginação, saltava do maravilhoso cavalheiresco para a hagiografia. E como o coração tem intuições da mais certeira inteligência, sabia fazer uma espécie de graduação do ensino religioso e dar-lhe um pitoresco selo realista e nacionalista. Eram os milagres de Damaso, o papa santo; de S. Gonçalo de Amarante (...); era Santo Antônio de Lisboa, o jovial franciscano, cuja casinha junto à Sé eu visitava todos os junhos pela sua mão; (...)”

Depois, com as flores começava o ciclo das procissões. (...) Passaram os anos; e a Páscoa, – ai de mim! – foi o último período de férias, derradeira pedra das poldras com que se quer vadear um largo rio. A Páscoa desencantou-se então para mim, foi o prelúdio dos exames, exames sem fim, sete, oito, nove, à maneira chinesa. (...)

Mas um dia chegou, em que me coube presidir a um novo ciclo de jantares da Páscoa, porque novos corações brotaram do meu, um busto de medalhão Renascença e loiras cabecitas numa grande chilreada incontinente, a assnalar outra época e outro conceito da educação. E outro dia chegou ainda em que a Páscoa, essa querida e perfumada Páscoa portuguesa mais não foi do que um motivo literário...

Madrid, Páscoa de 1928.

In “Intermedio nostalgico”, Notas para um Idearium Português, politica e litteratura, Lisboa: Sá da Costa, 1929, p. 207-215;

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