sábado, 29 de março de 2008

Luís Antônio Pimentel faz 96 anos e recebe homenagens






















Fotos: 1) De Paul, LAP c. 1936, jornalista da Gazeta de Notícias (Rio de Janeiro). Fonte: Obras reunidas, v. 3; 2) No Japão, entre amigos e amigas, c. 1938. Fonte: Um tupiniquim na Terra do Sol Nascente, de Alaôr Eduardo Scisínio, 1998; 3) LAP em 1955. Fonte: Livraria Ideal, de Aníbal Bragança, 1999; 4) LAP na Livraria Pasárgada, c. 1977. Acervo pessoal; 5) Ricardo Hallais Walsh e LAP, na Livraria Ideal, 2004; 6) LAP e Zuleika Hallais, no auditório da Câmara Municipal de Niterói, 2007. Arquivo pessoal; 7) LAP em 2004. Foto de Carlos Pilloto. Fonte: Obras reunidas, v. 1; 8) LAP em 2006. Foto de José Chacon; 9) LAP na Exposição de Haicais realizada no Instituto Abel, de Niterói, em homenagem ao Dia Internacional da Mulher, 2008. Arquivo pessoal. Direitos reservados.
Hoje, rara leitora, permita-me expansão de uma alegria maior, pois um dos seres humanos mais admiráveis que a vida me permitiu conhecer completa 96 anos, neste 29 de março, em plena saúde e vitalidade. Chama-se Luís Antônio Pimentel. Para os que não o conhecem, vai abaixo um minibiografia que, na orelha dos volumes, apresentava ao leitor o autor das Obras Reunidas, que tive o privilégio de organizar, em 3 volumes, e que foram lançadas em 2004.

Se está em Niterói participe das homenagens que lhe serão prestadas hoje no 2º Salão de Leitura de Niterói, que está sendo realizado pela Prefeitura e seus parceiros, no Caminho Niemeyer, ao lado do Terminal João Goulart, Centro. A homenagem ocorrerá no Auditório Luís Carlos Tourinho, às 17h, com participação de amigos e admiradores do muito querido Pimentel. Na ocasião será lançado um novo livro sobre a trajetória e a obra do homenageado.

Minibiografia:
Luís Antônio Pimentel, jornalista, professor e escritor, nascido em 29 de março de 1912, em Miracema (RJ), mora desde a infância em Niterói (RJ). De família em que se destacam intelectuais como seu tio Alberto Figueiredo Pimentel (1869-1914), começou cedo sua atuação na imprensa carioca. Parte de sua produção de jovem jornalista, publicada na Gazeta de Notícias, compõe o livro Crônicas do rádio, nos tempos áureos da Mayrink Veiga (v. 3 das Obras Reunidas). Em 1937, já afastado da Escola Nacional de Belas Artes, cujo curso não chegaria a concluir, recebeu bolsa de estudos para o Japão. Encantado com a cultura nipônica, lá ficou até 1942, saindo apenas quando houve a evacuação de estrangeiros do país, em guerra. Retornou a Niterói e passou a dedicar-se ao ensino técnico e à imprensa na antiga capital fluminense. Diplomou-se em jornalismo pela antiga Faculdade Nacional de Filosofia, em 1952. Construiu uma obra literária marcada profundamente pela cultura japonesa. Seu segundo livro, Namida no Kito (Prece em lágrimas), publicado no Japão, em 1940, foi o primeiro traduzido naquele país de poeta de língua portuguesa. Contos do velho Nipon, editado no Brasil, também em 1940, foi talvez o primeiro livro de autor brasileiro a divulgar a cultura tradicional japonesa em nosso país. O livro Tankas e haikais, de 1953, de rara beleza, tem como matriz estilística a poesia tradicional nipônica (v. 2 das Obras Reunidas). Desde a sua juventude, dedica-se também à pesquisa sobre a história e a cultura brasileiras, especialmente às suas tradições populares. Compositor bissexto em sua juventude, teve músicas gravadas por Carmem Miranda e Odete Amaral. Fotógrafo, artista plástico, historiador, biógrafo, memorialista, pertence a várias academias de Letras, Folclore e História, à Sociedade Fluminense de Fotografia e é presidente de honra do Grupo Mônaco de Cultura. Parte de sua colaboração na imprensa fluminense e seus livros sobre a cidade formam a Enciclopédia de Niterói (v. 1 das Obras Reunidas). Publica semanalmente a seção “Artes Fluminenses” nos jornais A Tribuna e Jornal de Icaraí, de Niterói (RJ).

Da Apresentação (na orelha) em Obras Reunidas, 3 volumes, organizadas por este blogueiro e publicadas pela Niterói Livros, da Secretaria de Cultura de Niterói, em 2004.

Conheça mais: acesse o e-Grupo Luís Antônio Pimentel, vida e obra, e participe:
http://groups.google.com/group/luis-antonio-pimentel

sexta-feira, 28 de março de 2008

Direitos autorais, novas tecnologias, livros, leituras e criação cultural contemporânea

Um olhar penetrante sobre o que está acontecendo na criação cultural contemporânea é o que se percebe ao ler o artigo de Bruno Dorigatti “Pirata bom, pirata mau” na Revista virtual Idiossincrasia. Convido-o, raro leitor, a acessar o excelente Portal Literal para ler o texto e também a fazer seu comentário: http://portalliteral.terra.com.br/Literal/calandra.nsf/0/A804FE1CDFCBD8AF032574160051A555?opendocument&pub=T&proj=Literal&sec=Reportagens

Aproveite para ver e ouvir no mesmo portal, na TV Literal, a entrevista concedida por este blogueiro, em 2005, durante a Primavera dos Livros, no Rio de Janeiro, ao mesmo Bruno Dorigatti, sobre o I Seminário Brasileiro sobre Livro e História Editorial, ocorrido em 2004, em que se fala sobre a leitura e o livro no Brasil diante dos novos desafios tecnológicos.
http://portalliteral.terra.com.br/Literal/calandra.nsf/0/62334BEFD20DAD2E0325708C006B5F53?OpenDocument&pub=T&proj=Literal&sec=TV%20LITERAL

E lá há muitos outros ótimos vídeos disponíveis, a conferir.

Para conhecer mais sobre o que foi o I Seminário, inclusive ver as fotos e ter acesso aos textos lá apresentados, visite o sítio Livro e História Editorial:
http://www.livroehistoriaeditorial.pro.br .

O Colóquio Internacional: “Arquivos, memória editorial e história da vida literária” e o II Seminário Brasileiro sobre Livro e História Editorial ocorrerão em novembro, de 3 a 6, no Rio. Mais notícias em breve. Participe.

terça-feira, 25 de março de 2008

Xavier Placer, 1916, encantou-se



Logo cedo Carlos Mônaco deu a notícia triste. Xavier Placer ficara livre dos sofrimentos terrenos que o acometiam há meses e, ontem, partira. Deixou-nos sua obra e a imagem de homem letrado, digno, avesso a badalações, sério. Deixou um romance inédito.

Membro das Academias Niteroiense e Fluminense de Letras. Foi professor universitário (Uni-Rio) e bibliotecário (Biblioteca Nacional). Dedicava-se à escritura e à leitura em sua bela casa de Pendotiba, onde vivia com a esposa, Da. Margarida.Ultimamente saía de casa por poucos motivos. Ir a livrarias, inclusive à Ideal, um deles.

Deixará vazio um lugar difícil de preencher na vida literária niteroiense. Sua obra e sua vida podem ser um farol para guiar vocações, neste tempo em que o homem letrado não é mais grande aspiração. Coisa para raros.

Rara leitora, convido-a a conhecer um naco da obra de Xavier Placer:


O geômetra



A Flávio & Celio (Moreira Placer)

1
Grande é a noite! Cabem nela
Nebulosas cabe o mar
Ecos coitos e aquela
Desrazão, a do sonhar
A mim, que o caos habitava
Mais me apraz a claridade:
Caçador, ao ombro a aljava
Avançar com agilidade
Colho de pronto evidências
Plurais. Porém as essências
Distingo-as em seu lugar
Colho palavras ao ouvido
Separo cada sentido
Oh volúpia de pensar!

In O geômetra. Niterói: Letras fluminenses, 1992, p. 9


Palavras

Voz, vocábulo, verbo – palavras! Palavras, criaturas vivas. Vivíssimas criaturas. Como as flores, os pássaros, os homens.

Palavras – umas toscas, obscuras, escravas nascidas para os humildes ofícios, dóceis a um gesto; outras, orgulhosas, esbeltas, sugestivas – jovens aloucadas que se esquivam quando lhes acenamos e vêm quando as quiséramos distantes... Aquelas têm o ar nostálgico do adeus, do aperto de mão nas despedidas; estas, a gravidade das sentenças – palavras dos lábios de Ariel, aladas palavras, e pragas de Calibã, com pés de chumbo.

E as que arrebataram ao arco-íris as mais belas tintas? Não se criaram no chão limoso das cavernas tantas outras? Odores esquisitos evolam-se das sílabas de algumas; algumas são cerradas, enxutas, solteironas.

Quantas são feitas de aurora e mel, em oposição a est’outras – negras, espessas, duras, de granito. Amoráveis palavras que têm o polimento dos seixos; e facetadas, espelhantes – cristais partindo-se ou risadas felizes – plásticas e móveis palavras, flamas batidas pelo vento – ardentes e inquietas. As que dizem demais e as que não dizem nada; as companheiras da solidão, dos altos pensamentos, das confissões patéticas. E as que gritam, que rugem e precipitam no céu ou levam ao abismo!
In O navegador solitário. Rio de Janeiro: Margem, 1956, p. 9-10.

Leia mais:
O último livro publicado de Xavier Placer, Poemas, pela Thesaurus Editora, de Brasília, Coleção Livro na Rua, v. 29, disponível para ler e baixar:
Acesse o sítio virtual de Antônio Miranda
http://www.antoniomiranda.com.br/poesia_brasis/rio_de_janeiro/xavier%20_placer.html

Leia também:

"Xavier Placer. Bibliotecário e escritor. Bibliografia publicada", organizada por Aníbal Bragança
"Literatura de cordel", artigo de Xavier Placer, do livro Imagens da Cidade, 1952.
In Arquivos do E-grupo Cultura Letrada, acesse:
http://groups.google.com/group/cultura-letrada/files
Veja outras fotos de Xavier Placer em:
Da fortuna crítica:

Sobre Xavier Placer, escreveu Otto Maria Carpeaux na apresentação do livro Imagens da cidade:

(...) Chegaram-me de Niterói os originais das Imagens da Cidade, obra de quem já é conhecido como poeta da ficção, tão poeta que não precisa ter receio de escrever em prosa.

Poeta, Xavier Placer é; mas certamente não é poeta no sentido vulgar da palavra. Não é um exaltado que vive em raptos de imaginação meio divina, meio maluca; tampouco uma cabeleira desesperada, candidato permanente ao suicídio. Não é romântico. Muitos menos é burguês disfarçado de romântico. É trabalhador consciencioso. Não improvisa. Não admite a eloqüência fácil. Escreve estilo depurado, dir-se-ia destilado, estilo de essências que mais esconde do que revela os sentimentos subjetivos. Se tem medo de alguma coisa, então será o medo de despir sua alma. Mas sabe revelar as almas das coisas e das casas; as almas das criaturas e das ruas; a alma da cidade.

Não acredito cometer uma indiscreção ao citar os dois poetas que o próprio autor das Imagens da Cidade considera como seus modelos: Aloysius Bertrand e Baudelaire, o Baudelaire do Spleen de Paris. São os criadores do poema em prosa. Mas não criaram o assunto. (...)

O Rio de Janeiro que existe dentro deste livro não é apenas a cidade maior e mais típica do Brasil; é a imagem fiel de todas as cidades brasileiras, sobretudo das provincianas e inclusive do Rio de Janeiro provinciano que já se foi. É, talvez, a imagem de todas as cidades provincianas do mundo cujo provincianismo está agonizando. (...)


Contudo, a poesia não admite as generalidades; uma suprema lei lhe manda ficar, sempre, concreta. Daí nosso autor não inventou uma cidade nas nuvens. Seu Rio de Janeiro existe. Até Niterói existe. Voltamos para a terra, ou antes, para as águas onipresentes desta nossa terra. A paisagem inconfundível das Imagens da Cidade é a baía de Guanabara.
(...)


Muitas vezes já repeti, para mim, essa confissão comovida. Hoje também, num domingo longe da Guanabara e das suas belezas tantas vezes cantadas com acentos tão falsos, digo aquelas palavras, de olhos fechados para ver, para ver as imagens da cidade. Nunca mais as esquecerei, enquanto esses olhos não se fecharem para sempre. Carioca como sou, não admitindo a independência de Niterói, anexei para a minha cidade o autor das Imagens da Cidade, meu amigo Xavier Placer. (...)

Platão: a escrita, a memória e a sabedoria

Certamente produto das dores da transição grega da oralidade para a sociedade letrada, esta passagem do Diálogo de Platão, Fedro ou Da beleza, é constantemente referida pelos estudiosos da escrita e da memória. Cremos ser ela também muito útil para se pensar nas relações entre uma certa sabedoria e a chamada erudição. Questões que certamente lhes interessam, rara e raro leitores, o que animou este neoblogueiro a fazer o registro abaixo, um pouco mais longo que o habitual, torcendo para que esta garrafa que o contém, antes de alcançar terra fértil, não se quebre de encontro a algum rochedo e tudo se perca nas águas do mar salgado. A tradução, logo se percebe, é portuguesa e castiça!


(...)
Sócrates – Por acaso sabes quais são as condições necessárias para que, já os discursos, já as ações sejam agradáveis aos deuses?

Fedro – Não, e tu sabes!

Sócrates – Pelo menos, conheço uma lenda que nos foi transmitida pela tradição antiga. Se é verdadeira ou falsa, não sei, mas, se por nós mesmos pudéssemos descobrir a verdade, importar-nos-íamos com o que os homens dizem?

Fedro – Que pergunta! Vamos, conta-me essa história que dizes ter ouvido!

Sócrates – Pois bem: ouvi uma vez contar que, na região de Náucratis [NT: Colônia grega no delta do Nilo. Platão visitou essa colônia aquando da sua estada no Egito], no Egito, houve um velho deus deste país, deus a quem é consagrada a ave que chamam íbis, e a quem chamavam Thoth. Dizem que foi ele quem inventou os números e o cálculo, a geometria e a astronomia, bem como o jogo das damas e dos dados, e, finalmente, fica sabendo, os caracteres gráficos (escrita). Nesse tempo, todo o Egipo era governado por Tamuz, que residia no sul do país, numa grande cidade que os gregos designam por Tebas do Egito, onde aquele deus era conhecido pelo nome de Ámon. Thoth encontrou-se com o monarca, a quem mostrou as suas artes, dizendo que era necessário dá-las a conhecer a todos os egípcios. Mas o monarca quis saber a utilidade de cada uma das artes e, enquanto o inventor as explicava, o monarca elogiava ou censurava, consoante as artes lhe pareciam boas ou más.

Foram muitas, diz a lenda, as considerações que sobre cada arte Tamuz fez a Thoth, quer condenando, quer elogiando, e seria prolixo enumerar todas aquelas considerações. Mas, quando chegou a vez da invenção da escrita, exclamou Thoth: “Eis, oh Rei, uma arte que tornará os egípcios mais sábios e os ajudará a fortalecer a memória, pois com a escrita descobri o remédio para a memória: – “Oh, Thoth, mestre incomparável, uma coisa é inventar uma arte, outra julgar os benefícios ou prejuízos que dela advirão para os outros! Tu, neste momento e como inventor da escrita, esperas dela, e com entusiasmo, todo o contrário do que ela pode vir a fazer!

Ela tornará os homens mais esquecidos pois que, sabendo escrever, deixarão de exercitar a memória, confiando apenas nas escrituras e só se lembrarão de um assunto por força de motivos exteriores, por meio de sinais, e não dos assuntos em si mesmos. Por isso, não inventaste um remédio para a memória, mas sim para a rememoração.

Quanto à transmissão do ensino, transmites aos teus alunos não a sabedoria, pois passraão a receber uma grande soma de informações sem a respectiva educação! Hão-de parecer homens de saber, embora não passem de ignorantes em muitas matérias e tornar-se-ão, por conseqüjência, sábios imaginários, em vez de sábios verdadeiros!

Fedro – Com que facilidade inventas, caro Sócrates, histórias egípcias e de outras terras quando isso te convém!

Sócrates – Dizem, caro amigo, que os primeiros oráculos no templo de Zeus, em Donona [NT: Cidade grega, notável pelo templo em honra de Zeus], foram feitos por um carvalho! É evidente que os homens daquele tempo não eram tão sábios como os da nossa geração e, como eram ingênuos, o que um carvalho ou um rochedo dissessem tornava-se muito importante, conquanto lhes parecesse verídico! Mas para ti talvez interesse saber quem disse determinada coisa e de que terra é natural, pois não te basta verificar se essa coisa é verdadeira ou falsa!

Fedro – Tens razão para me castigares com essas palmatoadas mas, no que respeita à escrita, parece-me que o tebano tinha razão.

Sócrates – De onde se conclui o seguinte: se alguém expõe as suas regras de arte por escrito e um outro vem depois, que aceita esse testemunho escrito como sendo a expressão sólida de uma doutrina valiosa, esse alguém seria tolo, não entendendo o aviso de Ámon, e atribuiria maior valor às teorias escritas do que a um simples tópico para rememoração do assunto tratado no escrito, não é assim?

Fedro – Perfeitamente!

Sócrates – O maior inconveniente da escrita parece-se, caro Fedro, se bem julgo, com a pintura. As figuras pintadas têm atitudes de seres vivos mas, se alguém as interrrogar, manter-se-ão silenciosas, o mesmo acontecendo com os discursos: falam das coisas como se estas estivessem vivas, mas, se alguém os interroga, no intuito de obter um esclarecimento, limitam-se a repetir sempre a mesma coisa. Mais: uma vez escrito, um discurso chega a toda a parte, tanto aos que o entendem como aos que não podem compreendê-lo e, assim, nunca se chega a saber a quem serve e a quem não serve. Quando é menoscabado, ou justamente censurado, tem sempre necessidade da ajuda do seu autor, pois não é capaz de se defender nem de se proteger a si mesmo.

Fedro – Continuas a exprimir-te com toda a justeza!

Sócrates – Deveremos agora examinar uma outra espécie de discursos, irmã legítima da precedente, como nasce e em que é superior à outra espécie.

Fedro – A que espécie de discursos aludes e como surge?

Sócrates – Refiro-me ao discurso conscienciosamente escrito, com a sabedoria da alma, ao discurso capaz de se defender a si mesmo, e que sabe quando convém ficar calado e quando convém intervir.

Fedro – Por acaso estás a referir-te ao discurso vivo e animado do sábio, do qual todo o discurso poderia ser tomado com um simples simulacro?

Sócrates – Exatamente a esse! Diz-me então: um agricultor inteligente possui sementes às quais dá grande valor e de que pretende obter os frutos. Achas que esse agricultor pensaria em semear essas sementes durante o verão, nos jardins de Adônis [NT: Forma grega da palavra semítica Adon, o Senhor], e que esperaria vê-las desenvolvidas, tornadas plantas, no prazo de oito dias? Seria possível que assim acontecesse, mas a simples título de culto religioso, na altura das festas em honra de Adônis. Mas, quanto às sementes a que deseje dar um fim útil, semeá-las-á em terreno apropriado, utilizando a técnica da agricultura, e sentir-se-á muito feliz se, ao oitavo mês, colher todas as que semeara!

Fedro – É evidente, Sócrates, que esse homem faria ambas as coisas, uma com intenção séria, outra com intenção diversa!

Sócrates – Mas podemos nós dizer que o homem conhecedor do justo, do belo e do bom, dará às suas próprias sementes um uso menos avisado do que o agricultor?

Fedro – Por nada deste mundo!

Sócrates – Pois bem, é evidente que, quem conheça o justo, o bom e o belo não irá escrever tais coisas na água, nem usará um caniço para semear os seus discursos, os quais, além de impotentes para se defenderem por si mesmos, não servem para ensinar corretamente a verdade.

Fedro – Pelo menos não seria provável que o fizessem:

Sócrates – É evidente que não! Não deixará, naturalmente, de semear nos jardins literários, mas apenas por passatempo. Ao escrever, apenas procurará acumular para si mesmo um tesouro de rememoração para a velhice, pois os velhos esquecem tudo. Tirará também grande prazer em escrever para os que seguem no seu caminho e muito se alegrará vendo crescer essas tenras plantas. Enquanto uns se divertirão em banquetes e outros festins semelhantes, o homem de quem falo divertir-se-á com as coisas que referi.

Fedro – Que magnífico divertimento, Sócrates, quando comparado com essoutro gênero de divertimentos de que falaste! Que bela atividade a de um homem que se compraz escrevendo discursos sobre a Justiça e sobre outras virtudes!

Sócrates – Assim é, meu caro Fedro! Todavia, acho muito mais bela a discussão destas coisas quando se semeiam palavras de acordo com a arte dialética, uma vez encontrada uma alma digna para receber as sementes! Quando se plantam discursos que se tornam auto-suficientes e que, em vez de se tornarem estéreis, produzem sementes e fecundam outras almas, perpetuando-se e dando ao que os possui o mais alto grau de felicidade que um homem pode atingir!

Fedro – Isso que agora disseste é ainda mais belo!

Sócrates – Já que chegamos e um acordo, caro Fedro, podemos decidir agora sobre outro assunto?
(...)


In Platão. Fedro ou da Beleza. 2a. ed. Trad. e notas de Pinharanda Gomes. Lisboa: Guimarães, 1981, p. 145-152.

domingo, 23 de março de 2008

Prêmio de Literatura Dalcídio Jurandir


A Fundação Cultural do Pará Tancredo Neves instituiu o Prêmio de Literatura Dalcídio Jurandir, cujas inscrições estão abertas e se encerram no dia 30 de maio próximo.
Participe.

Regulamento e outras informações:

http://www.fcptn.pa.gov.br/conteudo.php?codigo=72

Tel. 55 91 3202-4375 E-mail: gped@fcptn.pa.gov.br

Saiba mais obre o escritor Dalcídio Jurandir:

http://pt.wikipedia.org/wiki/Dalc%C3%ADdio_Jurandir

Santa Rosa, por Rachel Jardim


Tomás Santa Rosa em seu atelier. Foto constante do livro de Barsante, abaixo referido.
Capa de Santa Rosa para a José Olympio, editora a quem prestou relevantes serviços como artista gráfico.


Santa Rosa morreu na Índia, um país onde a morte é considerada um acidente natural, ou apenas uma pequena pausa. Ele, tão plantado na vida, buscando-a sempre, persistentemente, em tudo o que fazia.

Nesta ocasião, apareceu o seu retrato nos jornais – rosto redondo, óculos, nenhum cabelo, cigarro constantemente pendurado na boca. Era um tipo arredondado, sem arestas, sem ossos à vista. Carregado de humanidade, alguém para se levar para a casa, sentar no sofá e deixar falar.

Por essa época, literatura estava muito fora das minhas cogitações. Mas aquela estranha morte na Índia me deixou muitos dias abalada. Não combianava com ele, tampouco parecia destinado a qualquer tipo de tragédia. Sua integração à nossa paisagem era total. Como pois aceitar aquela morte num mundo tão diferente?

Uma vez, ilustrou um conto meu. A ilustração era muito melhor do que o conto. Dera a ele uma dimensão que não tinha. Quando vi a ilustração pensei: era assim que eu queria ter escrito. Eu falava numa chuva translúcida. Ele fez uma chuva translúcida.

Pelos idos de 40 fui parar, não sei como, no seu atelier. Sentei-me num caixote. Livros e quadros por toda a parte. Maquetes para cenários. Ele nem deconfiava que eu era a moça de quem alguns anos antes tinha ilustrado um conto. Nada lhe disse.

Tirei da estante o Romancero Gitano, de García Lorca.

– Que tipo lorquiano, você é – disse-me – Por dentro e por fora.

Eu ri e concordei. Leu-me uns versos do Romancero e depois me disse:

– Olhe, não quer posar para mim? Faria de você um retrato lorquiano.

Olhei para os seus quadros na parede. Não havia quase figuras. Uma nítida atmosfera da época, a visão de beleza da década.

Pensei – posarei. E combinei aparecer no dia seguinte. Não o vi mais.

Tão importante. Tão humano, sua arte impregnada de vida. Perdi o retrato, mas guardei sua imagem. Lembro-me dele totalmente – voz, gestos, riso, modulações, terno, sapato. Pouca gente permaneceu tanto dentro de mim. Foi curto o instante, mas tão permanente. Não pintou meu retrato, mas o dele pintou-se em mim.

In Os anos 40. Rio de Janeiro: José Olympio, 1973, p. 97-8


Para saber sobre o artista Tomás Santa Rosa:
Na rede:

http://www.itaucultural.org.br/aplicExternas/enciclopedia_teatro/index.cfm?fuseaction=personalidades_biografia&cd_verbete=854

Livros:

BARSANTE, Cássio Emmanuel. A vida ilustrada de Tomás Santa Rosa. Rio de Janeiro: Fundação Banco do Brasil ; Bookmakers, 1993.
CARDOSO, Rafael (org.). O design brasileiro antes do design: aspectos da história gráfica, 1870-1960. São Paulo: Cosac Naify, 2005.

sábado, 22 de março de 2008

Páscoa, por Fidelino de Figueiredo

Rara leitora, ainda explorando recente aquisição bibliográfica no acervo de Miguel Freitas Pereira, recorro a um outro texto de Fidelino de Figueiredo (que infelizmente muito recorto) para registrar a passagem da Páscoa. As suas recordações lembram outra Páscoa, das amêndoas confeitadas, mais próxima de minha infância do que da Páscoa que vivo hoje com seus coelhinhos, colombas italianas e ovos de chocolate, que, sendo dos bons, meio amargos, adoro.

E a sua Páscoa, querida leitora, caro leitor? Que seja o início de um novo ciclo tão ou mais feliz que o que se encerra, neste simbólico renascimento cristão.


(...) Tanto quanto posso recuar nas minhas recordações, a Páscoa para mim associa-se a uma das principais emoções da liberdade. Era o tempo em que meu pai, com uma pontualidade austera de dever, distribuía a todos da família, todos os anos mais numerosa, velhos e novos, próximos e afastados, um grande cartucho de amêndoas. O confeiteiro já contava, na sua fabricação, com aquele consumidor principesco. E eu podia, nessa tarde, crendo iludir a vigilância materna, dar-me à gula mais voraz até que, saciado e cansado, adormecia com boca lambuzada e o meu tesouro prodigamente entornado pelo chão.

Mais tarde a Páscoa teve rescendentes anunciadores: as violetas que por toda a parte negrejavam e embalsamavam o ar; as olaias, as árvores caprichosas que florescem antes de reverdecer; e esses misteriosos filtros noturnos, trescalando de dentro de altos muros herméticos e romantizando a imaginação...

– Ela aí vem a boa Páscoa! E os velhos da família, vendo findar a dura prova do inverno, cobravam novos alentos, sucessivamente, até ao instante em que, desiludidos desse paralelismo, foram vendo que na vida há só uma primavera: “E tudo mais renova, isto é sem cura!”, já lamentava Sá de Miranda.

Era a chegada de prazeres castos e de novidades que mudavam o sinal e a expressão ao giro cotidiano. Primeiro, essa ostentação luxuosa, pelos talhos e confeitarias, de tudo que fora proibido durante a quaresma: as mais opulentas viandas a esmaltar um grande fundo verde-negro de folhas de louro, do teto pendentes festões de flores variegadas, de papel, nos mostradores a graciosa arquitetura de uma cenografia. E eu já conhecia de ano para ano os lugares comuns dessas decorações: aqui o comboio que incansavelmente transpunha uma ponte e que eu um dia descobri que era sempre o mesmo em movimento circular; acolá um preto que revirava os olhos e me negaceava com um pau de chocolate, e que eu via envelhecer em seu pontual automatismo de cartão; adiante uma Torre Eiffel, que não era de açúcar, era de gesso que se esboroava... Era o bruxolear do espírito crítico na sua primeira função, matar as ilusões.

As tardes, já mais longas, acrescentavam aos dias umas horas deliciosas; e minha mãe, nas narrativas com que me entretinha a imaginação, saltava do maravilhoso cavalheiresco para a hagiografia. E como o coração tem intuições da mais certeira inteligência, sabia fazer uma espécie de graduação do ensino religioso e dar-lhe um pitoresco selo realista e nacionalista. Eram os milagres de Damaso, o papa santo; de S. Gonçalo de Amarante (...); era Santo Antônio de Lisboa, o jovial franciscano, cuja casinha junto à Sé eu visitava todos os junhos pela sua mão; (...)”

Depois, com as flores começava o ciclo das procissões. (...) Passaram os anos; e a Páscoa, – ai de mim! – foi o último período de férias, derradeira pedra das poldras com que se quer vadear um largo rio. A Páscoa desencantou-se então para mim, foi o prelúdio dos exames, exames sem fim, sete, oito, nove, à maneira chinesa. (...)

Mas um dia chegou, em que me coube presidir a um novo ciclo de jantares da Páscoa, porque novos corações brotaram do meu, um busto de medalhão Renascença e loiras cabecitas numa grande chilreada incontinente, a assnalar outra época e outro conceito da educação. E outro dia chegou ainda em que a Páscoa, essa querida e perfumada Páscoa portuguesa mais não foi do que um motivo literário...

Madrid, Páscoa de 1928.

In “Intermedio nostalgico”, Notas para um Idearium Português, politica e litteratura, Lisboa: Sá da Costa, 1929, p. 207-215;

Darel, por Rachel Jardim, 1973

Da série As meninas, de Darel Valença Lins

Chamava-se Darel porque os pais estavam acompanhando um filme em série, em que o mocinho se chamava Darel. Só que pronunciavam, é claro, Darél, e não Deirel. Também Deirel não teria lhe assentado, com aquele sotaque nordestino.

Naquela época eu andava meio solta aqui no Rio. Minhas raízes ainda estavam muito em Minas. Por aqui, vagava como alma penada, mais do que existia. (Aliás, vagar sempre foi a minha tendência. E o existir era tão dentro, que ficava imperceptível.) Conheci Cláudio Correia e Castro, menino, em Juiz de Fora. Murgel pelo lado da mãe, primo de Kalma. Por esse tempo ele pintava, ou melhor, gravava. Suas gravuras tinham um pouco da atmosfera de Van Gogh. Lembro-me nitidamente de um par de botinas. Tão solitárias!...

Num domingo, fui ao seu atelier. Ele me apresentou a Darel e também a um rapaz magro, com cara de anjo perdido, chamado Marcelo Grassman. Fisicamente, era o oposto de Darel. Este, não devia ser muito bem alimentado, mas parecia. O outro, dava para ilustrar um quadro sobre a fome.

Cláudio emprestava o seu estúdio para os dois trabalharem, pois ambos, vindos de fora, estavam na fase da sobrevivência.

Darel, quando apareci, desenhava no chão. Eu olhei as gravuras e disse: “Humilhados e Ofendidos, não é?” Ele levantou os olhos: “Você reconhece?” Claro que reconhecia. Elas estão hoje na minha parede: “De Darel para Rachel”.

Eu tinha paixão por Goeldi. Darel sofria fortemente a sua influência. Mas ao contrário de Goeldi, fisicamente não se parecia com o que desenhava (há pintores e escritores que são idênticos, na própria aparência, ao que fazem. Nada mais parecido com Murilo Rubião do que os seus próprios personagens). Era atarracado, vital, corado, muito mais Sancho Pança do que Dom Quixote. Percebia-se logo a firme determinação de vencer, a que preço fosse. Venceu com o talento, mas nunca teria perdido, mesmo sem talento.

Acho que Darel jamais me entendeu muito bem. Não há muita coisa em comum, creio, entre mineiros e nortistas. Mas ficamos amigos. Espantoso como é que naquele tempo, quando passava fome, jamais teve pinta de pobre. Marcelo Grassman parecia miserável. Darel usava sempre uma jaqueta tipo cardigan, meio gasta, que tinha sido de Cláudio, com calças de flanela cinza, também herdadas. Entraria, tranqüilamente, no Country. Suas origens, entretanto, eram as mais modestas. Tinha vocação para rico e “bem”. “Bem” já era, rico ficou. (“Bem”, expressão que aprendi na Faculdade Católica da rua São Clemente. Ali todos eram. Para muitos, era a mais importante condição existencial.)

Ele me dizia coisas engraças: “Quanto criança, chamava as minhas figuras de kalungas. Ainda hei de ganhar dinheiro com meus kalungas.” (Anos mais tarde me falou: “Viu, ganhei dinheiro com os kalungas”....) Ou “Não, não gosto dessa espécie de religião sofisticada, tipo Mosteiro de São Bento. Religião, gosto mesmo, bem simplesinha, filhas de Maria, procissões ‘No céu triunfarei’, etc.”... E falando de um padre conhecido: “Ele é desses tipos de padre que têm sempre, a respeito de Deus, uma frasezinha de algibeira...”

Anos depois, quando estava para me desquitar, fui falar com um padre. Disse-lhe que não acreditava em Deus. Ele respondeu: – Mas Deus acredita na senhora... (como é que ele sabia?) Lembrei-me das frasezinhas de algibeira de Darel e comecei a rir.

Quando Darel tirou primeiro lugar na bienal de São Paulo, quando lhe deram uma sala inteira para expor, fiquei orgulhosa de ter reconhecido nos seus “kalungas” as figuras de Aliocha, Nelly e Natacha. Era fácil. Naquela época, quando eu lia Dostoiewski, sentia frebre. Sentia muita frebre, nos anos 40.


In Os anos 40, Rio de Janeiro: José Olympio, 1973, p. 90-91

Conheça mais:

Fidelino de Figueiredo (1888-1967): “Philosophias dum editor” [sobre um livro de Bernard Grasset]

Nos últimos meses, caro leitor, um grupo privilegiado de amigos do livreiro Carlos Mônaco, no qual nos incluímos, tem tido a oportunidade de garimpar o acervo extraordinário da biblioteca do saudoso médico e poeta Miguel Freitas Pereira, em Niterói, e assim descobrir preciosidades bibliográficas.

Algumas vezes são apenas modestos volumes que guardam textos pouco conhecidos, à espera de quem os resgate de seu sono. Tal é o caso do artigo em referência, de Fidelino de Figueiredo, notável crítico e historiador da literatura, que deu importante contribuição ao desenvolvimento dessas disciplinas em Portugal e no Brasil, onde foi professor da Universidade de São Paulo.

Na dedicatória do livro que faz a sua mulher, o Autor afirma: "(...) O pae de Jupiter concedeu-me a graça de se interessar por alguns dos meus problemas e das minhas duvidas sobre o nosso tempo e até sobre a ethica da servidão litteraria. Os seus juizos, um pouco ambiguos como linguagem de oraculo e com uma travação logica pouco de accordo com as nossas paixões vãs e os nossos enganosos interesses, traduzidos nos lugares communs de hoje, formaram este pobre caderno de notas. (...)"

O artigo, talvez uma resenha crítica do livro La chose littérarie, do editor francês, Bernard Grasset (1881-1955), o que publicou a primeira edição, por conta do autor, Du côté de chez Swan, de Marcel Proust, em 1913, aponta as mudanças que então se operavam no mundo do livro, com o surgimento do editor-empresário e o lugar central que passa a ocupar na vida literária, o que, para Figueiredo, apontaria para o que chama "servidão literária" dos autores, aos quais conclama a fazer uma "rebelião da pena".

O texto de Fidelino, por sua aguda observação da cultura letrada de seu tempo, aqui mantido em sua ortografia original, merece ser lido e discutido como um documento da história editorial. É o convite-desafio que lhe fazemos, raro e querido leitor.


Sobre as intimidades da vida litteraria, as suas grandezas e as suas servidões, a sua ethica e a sua funcção e até a sua bohemia de romanticas sobrevivencias, muitos auctores teem feito o seu depoimento, mesmo aqui em Hespanha, onde escrevo. Em forma de ficção ou em ensaios criticos, possuimos as reflexões agudas sobre esse duro mistér, de Palacio Valdés, Valle-Inclan, Salaverria, Araujo Costa, Carretero, Carrere e Gomez de la Serna. Mas o aspecto editorial desse mistér, o seu conteúdo industrial, que se relaciona menos com a inspiração interior dos artistas do que com as sollicitações e curiosidades actuaes do publico, não será tambem parte integrante do phenomeno litterario, que, sendo individualissimo no ponto de partida, visa á communicação, a uma grande emoção commum? Sem duvida, principalmente nos tempos modernos, em que vamos caminhando para um derramamento cada vez maior da cultura, mais ainda depois da guerra, porque desta guerra ficou uma curiosidade sempre desperta e insaciavel, que nasceu da avidez diaria do communicado militar, mas que, sobrevivendo á guerra, ampliou consideravelmente a massa de leitores.

Foi então que intervieram os editores, com seu sentido de opportunidade e com a transformação da sua technica – affirma Bernard Grasset, conhecido livreiro francês.

Para explicar o novo conceito do seu officio e a sua ampla influencia cultural, Grasset publicou em Le Journal uma serie de artigos, que reunidos no volume recente La chose littéraire continuam a impressionar, a escandalisar quase pela audacia dos seus pontos de vista. É esse depoimento uma contribuição para o processo de interpretação do phenomeno litterario.

Essa obra só poderia sahir em França. Supponho que só um editor francês disporia da flexibilidade de espirito, do gosto, da afoiteza um pouco cynica, para nos cozinhar, guizar e servir um tal punhado de opiniões pittorescas, que formam toda uma concepção nova da profissão editorial.


Para ler o texto na íntegra acesse os Arquivos do E-Grupo Cultura Letrada, em
http://groups.google.com/group/cultura-letrada/files

Leia mais:
Sobre a trajetória e a contribuição de Fidelino de Figueiredo na origem dos estudos de Literatura Portuguesa no Brasil:
http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0103-40141994000300055&script=sci_arttext

Outros dados biográficos de Fidelino de Figueiredo:
http://www.iel.unicamp.br/cedae/Exposicoes/Expo_JSena/figueiredo.html

sexta-feira, 21 de março de 2008

Sophia de Mello Breyner Andresen (1919-2004)

Hoje, raro leitor, no silêncio da sexta-feira santa, dia consagrado pelos católicos à Paixão de Cristo, revisitemos a poesia de uma das maiores escritoras da literatura contemporânea de língua portuguesa. Sophia recebeu, em 1999, o Prêmio Camões.



A veste dos fariseus

Era um Cristo sem poder
Sem espada e sem riqueza
Seus amigos o negavam
Antes do galo cantar
A polícia o perseguia
Guiada por Fariseus

O poder lavou as mãos
Daquele sangue inocente
Crucificai-o depressa
Lhe pedia toda a gente
Guiada por Fariseus

Foi cuspido e foi julgado
No centro duma cidade
Insultos o perseguiram
E morreu desfigurado

O templo rasgou seus véus
E Pilatos seus vestidos
Rasgaram seu coração
Maria Mãe de João
João Filho de Maria

A treva caiu dos céus
Sobre a terra em pleno dia

Nem uma nódoa se via
Na veste dos Fariseus



As pessoas sensíveis

As pessoas sensíveis não são capazes
De matar galinhas
Porém são capazes
De comer galinhas

O dinheiro cheira a pobre e cheira
À roupa do seu corpo
Aquela roupa
Que depois da chuva secou sobre o corpo
Porque não tinham outra
O dinheiro cheira a pobre e cheira
A roupa
Que depois do suor não foi lavada
Porque não tinham outra

“Ganharás o pão com o suor do teu rosto”
Assim nos foi imposto
E não:
“Com o suor dos outros ganharás o pão”

Ó vendilhões do templo
Ó construtores
Das grandes estátuas balofas e pesadas
Ó cheios de devoção e de proveito

Perdoai-lhes Senhor
Porque eles sabem o que fazem


A pura face

Como encontrar-te depois de ter perdido
Uma por uma as tardes que encontrei
Ó ser de todo o ser de quem nem sei
Se podes ser ao menos pressentido?

Não te busquei no reino prometido
Da terra nem na paixão com que eu a amei
E porque não és tempo não te dei
Meu desejo pelas horas consumido

Apenas imagino que me espera
No infinito silêncio a pura face
Pra’ além da vida morte ou Primavera
E que a verei de frente e sem disfarce



O poema

O poema me levará no tempo
Quando eu já não for eu
E passarei sozinha
Entre as mãos de quem lê

O poema alguém o dirá
Às searas

Sua passagem se confundirá
Com o rumor do mar com o passar do vento

O poema habitará
O espaço mais concreto e mais atento

No ar claro nas tardes transparentes
Suas sílabas redondas

(Ó antigas ó longas
Eternas tardes lisas)

Mesmo que eu morra o poema encontrará
Uma praia onde quebrar as suas ondas

E entre quatro paredes densas
De funda e devorada solidão
Alguém seu próprio ser confundirá
Com o poema no tempo

Do posfácio:
“(...) Sempre a poesia foi para mim uma perseguição do real. Um poema foi sempre um círculo traçado à roda duma coisa, um círculo onde o pássaro do real fica preso. E se a minha poesia, tendo partido do ar, do mar e da luz, evoluiu, evoluiu sempre dentro dessa busca atenta. Quem procura uma relação justa com a pedra, com a árvore, com o rio, é necessariamente levado, pelo espírito de verdade que o anima, a procurar uma relação justa com o homem. Aquele que vê o espantoso esplendor do mundo é logicamente levado a ver o espantoso sofrimento do mundo. Aquele que vê o fenômeno quer ver todo o fenômeno. É apenas uma questão de atenção, de seqüência e de rigor. (...)”

In Livro Sexto, 3a. ed. Lisboa: Morais, 1966.

Leia mais:

http://pt.wikipedia.org/wiki/Sophia_de_Mello_Breyner

http://www.iplb.pt/pls/diplb/!get_page?pageid=401&tpcontent=FA&idaut=1695967&idobra=

quinta-feira, 20 de março de 2008

Machado de Assis, Centenário de morte (1908-2008)

Rara leitora, o livro organizado por Cláudio Murilo Leal, com "toda a poesia" de Machado de Assis, nosso maior romancista, fez com que visitássemos também sua poesia.
Queremos compartilhar com você estas leituras prazerosas, com a sensação de estarmos vivenciando a imortalidade de sua obra.

Livros e flores

Teus olhos são meus livros.
Que livro há aí melhor,
Em que melhor se leia
A página do amor?

Flores me são teus lábios.
Onde há mais bela flor,
Em que melhor se beba
O bálsamo do amor?


Cognac!..

Vem, meu Cognac, meu licor d’amores!...
É longo o sono teu dentro do frasco;
Do teu ardor a inspiração brotando
O cérebro incendeia!...

Da vida a insipidez gostoso adoças;
Mais val um trago teu que mil grandezas;
Suave distração – da vida esmalte,
Quem há que te não ame?

Tomado com o café em fresca tarde
Derramas tanto ardor pelas entranhas,
Que o já provecto renascer-lhe sente
Da mocidade o fogo!

Cognac! – inspirador de ledos sonhos,
Excitante licor – de amor ardente!
Uma tua garrafa e o Dom Quixote,
É passatempo amável!

Que poeta que sou com teu auxílio!
Somente um trago teu m’inspira um verso;
O copo cheio o mais sonoro canto;
Todo o frasco um poema!


Alencar

Hão de os anos volver, – não com as neves
De alheios climas, de geladas cores;
Hão de os anos volver, mas como as flores,
Sobre o teu nome, vívidos e leves...

Tu, cearense musa, que os amores
Meigos e tristes, rústicos e breves,
Da indiana escreveste, – ora os escreves
Nos volumes dos pátrios esplendores.

E ao tornar este sol, que te há levado,
Já não acha a tristeza. Extinto é o dia
Da nossa dor, do nosso amargo espanto.

Porque o tempo implacável e pausado,
Que o homem consumiu na terra fria,
Não consumiu o engenho, a flor, o encanto.


Espinosa

Gosto de ver-te, grave e solitário,
Sob o fumo de esquálida candeia,
Nas mãos a ferramenta de operário,
E na cabeça a coruscante idéia.

E enquanto o pensamento delineia
Uma filosofia, o pão diário
A tua mão a labutar granjeia
E achas na independência o teu salário.

Soem cá fora agitações e lutas,
Sibile o bafo aspérrimo do inverno,
Tu trabalhas, tu pensas, e executas.

Sóbrio, tranqüilo, desvelado e terno,
A lei comum, e morres, e transmutas
O suado labor no prêmio eterno.


1802-1885

Um dia, celebrando o gênio e a eterna vida,
Vítor Hugo escreveu numa página forte
Estes nomes que vão galgando a eterna morte,
Isaías, a voz de bronze, alma saída
Da coxa de Davi; Ésquilo que a Orestes
E a Prometeu, que sofre as vinganças celestes
Deu a nota imortal que abala e persuade,
E transmite o terrror, como excita a piedade.
Homero, que cantou a cólera potente
De Aquiles, e colheu as lágrimas troianas
Para glória maior da sua amada gente,
E com ele Virgílio e as graças virgilianas;
Juvenal que marcou com ferro em brasa o ombro
Dos tiranos, e o velho e grave florentino,
Que mergulha no abismo, e caminha no assombro,
Baixa humano ao inferno e regressa divino;
Logo após Calderón, e logo após Cervantes;
Voltaire, que mofava, e Rebelais que ria;
E, para coroar esses nomes vibrantes,
Shakespeare, que resume a universal poesia.

E agora que ele aí vai, galgando a eterna morte,
Pega a História da pena e na página forte,
Para continuar a série interrompida,
Escreve o nome dele, e dá-lhe a eterna vida.

In Toda a poesia de Machado de Assis, org. por CláudioMurilo Leal. Rio de Janeiro: Record, 2008.

domingo, 16 de março de 2008

Três livros autografados: a poesia de Machado, os contos de Wanderlino e os animais de Sávio

Não acontece com freqüência, mas na última quinta-feira, 13, se deu. Atendi, com Lizete, ao amabilíssimo convite de Cláudio Murilo Leal e fui ao lançamento do alentado e belo volume Toda a poesia de Machado de Assis, por ele organizado, prefaciado e lançado pela Record. Cláudio Murilo poeta, professor da UFRJ, diplomata, bibliófilo, é hoje presidente do Pen Club do Brasil. Neste ano. em que se comemora o bicentenário da implantação definitiva da tipografia no Brasil, e é consagrado ao nosso maior prosador, nos 100 anos de sua morte, o lançamento de toda a poesia machadiana num só volume é muito oportuna. Ainda mais com o evidente cuidado que organizador e editora a ele dedicaram e que nos aproxima de parte menos conhecida da obra do Mestre.

A seguir, fui para a Livraria da Eduff, nos jardins da Reitoria da nossa Universidade Federal Fluminense, para rever Sávio Freire Bruno, jovem pesquisador e velho amigo, hoje um notável biólogo dedicado à fauna silvestre, professor da Faculdade de Veterinária da UFF, que autografava lindo livro, 100 animais ameaçados de extinção no Brasil e o que você pode fazer para evitar, editado pela Ediouro. Além de feliz pelo carinho com que Sávio relembrou tempos da Pasárgada e do aiki do, saí de lá com dois exemplares dedicados a João Pedro, um, e outro a Tomás, meus netos cheios de consciência ecológica. A responsabilidade pela salvação e equilíbrio do planeta certamente será uma dura tarefa para as novas gerações.

Não pude ficar mais. A algumas centenas de metros, no Club Central, na Praia de Icaraí, autografava o escritor niteroiense Wanderlino Teixeira Leite Netto seu volume de contos Beijo de língua, lançado pela Editoração. Sua trajetória vi nascer, quando lançou seus primeiros livros na Pasárgada. Revelou-se um profícuo cultor das letras, em diferentes gêneros, e é hoje diretor da Academia Niteroiense de Letras, rejuvenescida e atuante.

Livros e amigos criam espaços para o cultivo de sociabilidades finas e de afetos seletos. Dia rico. Pena ter assim perdido algumas palestras desse dia e a conferência de Maria Beatriz Nizza da Silva no Congresso Internacional 1808 – A Corte no Brasil, organizado pelo Departamento de História e o Programa de Pós-graduação em História da UFF, e que enriqueceu a todos nós durante esta semana em que se relembra e reavalia a chegada da Corte ao Rio de Janeiro.

E que, naturalmente, nos trouxe também livros novos: Uma colônia entre dois impérios – A abertura dos portos brasileiros, 1800-1808, de José Jobson de Andrade Arruda, da EDUSC, Iluminismo e Império no Brasil, O Patriota (1813-1814), organizado por Lorelai Kury, da Editora Fiocruz e Biblioteca Nacional, e Literatura, história e política em Portugal (1820-1856), de Almeida Garrett, Alexandre Herculano e A. P. Lopes de Mendonça, organizado por Lúcia Maria Bastos Pereira das Neves, Paulo Motta Oliveira, Sérgio Nazar David e Tânia Maria Tavares Bessone da Cruz Ferreira, da EdUERJ. Este com dedicatórias fraternas. Temas para outro registro.

Um livreiro singular, por Salim Miguel

Costuma-se repetir que a paixão do livro se sustenta em dois pólos: o autor e o leitor. É um equívoco. Junto a eles estão o editor, o gráfico, o distribuidor, o divulgador, o bibliotecário, o bibliófilo, o livreiro – nesta ou na ordem que desejarem.

Se me pedissem para apontar um livreiro singular, eu não titubearia um segundo: Odilon Lunardelli.

Tenho vaga lembrança dele trabalhando nos Correios, onde também trabalhava D. Rita, minha sogra. Em 65, devido ao golpe militar, mudei-me para o Rio de Janeiro. Nas esporádicas vindas a Florianópolis, tomei conhecimento das novas atividades do Odilon, que saía, com seu carro atulhado de livros, tentando vendê-los pelo interior do Estado. Daí para a livaria, um pulo. Mas foi a partir de 1979, com meu retorno para Florianópolis, que nosso relacionamento se estreitou. Passei a encontrá-lo regularmente. Um ponto nos aproximava mais: eu também havia sido livreiro, na década de 50. Antecipo dois fatos estranhos: jamais entrei na outra livraria dele e depois que morreu não voltei à livraria da Victor Meirelles, nem creio ter cruzado a rua.

Como todo livreiro que se apaixona pela profissão, Odilon Lunardelli devia ter muito o que contar. Recusava fazê-lo, mesmo em papos informais. Provocado, soltava-se, para logo se fechar. A fim de incentivá-lo, narrava-lhe episódios de minha frustrada experiência. Várias vezes eu vira conhecidos e/ou amigos furtando livros; envergonhado, deixava-os levá-los; ou a história de um apaixonado por viagens, comprava tudo que aparecia, encomendava outros, até em idiomas que desconhecia. Um dia se animou, integrou-se a uma excursão que ia a Salvador. Abandonou-a pelo meio, voltou correndo para me dizer que nada o interessara naquela velharia que tantos elogiavam – e encomendou-me livros sobre Salvador.

Tudo em vão. Odilon não se rendia. Ria-se, fumava, tomava outro cafezinho, folheava um livro, atendia o telefone.

Faz pouco, animado pela leitura de Memorias de um librero [Madrid: Anaya & Mario Muchnik, 1994], do argentino Hector Yánover, reli o livro de Herbert Caro, Balcão de livraria [Rio de Janeiro: MEC-Serviço de Documentação, 1960] . Em ambos, passagens pitorescas. Herbert Caro, que se tornaria importante tradutor, conta que certo dia duas meninas-em-flor buscavam um livro para presentear o namorado de uma delas. Não se decidiam, até que a outra disse: “Ele já tem UM livro, por que não lhe dás outra gravata?” Já Yánover conta de um senhor que entrou na livraria e foi logo dizendo que vinha em busca do livro El rosal de las ruinas. Eis o trecho em espanhol: “Quando se lo alcancé, lo hojeó con cierta desconfianza y me dijo: – No. Este no. Quiero un libro. – Es el que usted me pidió. – No! Usted no me entiende. Yo quiero un libro y éstos son versos! Um libro para leer. No versos.”

........................

Rara leitora, leia o texto integral de Salim Miguel nos Arquivos do Grupo do Google Cultura Letrada, coordenado por este blogueiro. Clique aqui:
http://groups.google.com/group/cultura-letrada

*
Este texto está no volume Nosso homem do livro: Odilon Lunardelli, depoimentos. Org. de Francisco José Pereira. Florianópolis: União Brasileira de Escritores de Santa Catarina, 1999, p. 67-70.
Salim Miguel é um escritor, premiadíssimo, e editor catarinense. Um dos criadores da revista Ficção. Conheça mais: Memória de editor, com Salim Miguel & Eglê Malheiros. Dorothée de Bruchard, org. Florianópolis: Escritório do Livro ; Imprensa Oficial do Estado de Santa Catarina, 2002. 93 p.

sábado, 15 de março de 2008

Manuel Segalá, poeta, artista gráfico, editor-impressor








Gravura, capa e edição de Manuel Segalá do livro Da profissão do poeta, de Geir Campos, Editora Civilização Brasileira, 1956; Capa e edição de Manuel Segalá do livro Poemas, de Vladímir Maiacovski, coleção Maldoror, edição Philobiblion/Editora Civilização Brasileira, 1956; ilustração de Manuel Segalá no livro Cadernos de João, de Aníbal Machado, Editora José Olympio, 1957.
Manuel, dito Manolo, Segalá, poeta e gráfico espanhol (Barcelona, 1917-Rio de Janeiro, 1958). Bacharel em filosofia e letras, cursos superiores de Belas-Artes em Barcelona, Paris e Roma, publicou os volumes de poesia Le voz en el aire, Romance a la maja desnuda, Elegias, Oración a Cristo en la Cruz e Corcel de sombra. Teve forte atuação na imprensa escrita e falada em Barcelona e, depois do término da guerra civil espanhola, no exterior (França, Itália, Uruguai, Argentina). No Brasil, viveu seus quatro últimos anos, havendo-se notabilizado por seus exemplares de bibliofilia, inclusive por sua editorial Philobiblion, pela qual publicou textos, com xilogravura suas, de Carlos Drummond de Andrade, Machado de Assis, Manuel Bandeira, Geir Campos, García Lorca, Kafka, Raul de Leoni, Aníbal Machado, Cecília Meireles, Gabriela Mistral etc., ademais de A sereia (revista de poesia nos. 1, 2, 3 e 4). Foi também notável capista, ademais de haver-se dedicado à pintura e à escultura.
Conforme verbete na Grande Enciclopédia Delta-Larousse, Rio de Janeiro: Delta, v. 13, 1971, p. 6229.


"Morreu Segalá"
Aníbal M. Machado

A Manuel Segalá teria faltado (inadvertência? abusiva confiança?) a percepção do limite além do qual o nosso sol deixa de tansfundir energia vitalizante e começa a despedir raios mortíferos. Pois o verão dos trópicos armou-lhe uma cilada. E na leva de fevereiro último, dentre os muitos que sacrificou na rua, retirou da sua modesta oficina gráfica, e para sempre, da vida este poeta e artista catalão – homem universal pela experiência de muitas terrras, de muitas ruas e bares do mundo, brasileiro por amor de uma companheira a quem se unira, e fino mestre de artes gráficas pela devoção com que fez de “A Verônica” – a prensa manual com que desembarcou no Brasil – menos um instrumento de lucro material do que uma fonte de prazer. Artista-gravador, Segalá esmerava-se na construção estética do livro, e só concebia o livro como imagem exterior do seu contexto, em consonância com a sua natureza e espírito. Este o sentido com que valorizou a coleção Maldoror, da Editora Civilização Brasileira, e algumas edições avulsas, de sua livre preferência.

Morreu sem se anunciar, sem dar sinais de que lhe estava próximo o fim. Passada a surpresa de seu desaparecimento, sentimos o quanto essa figura se singularizou por traços com que, via de regra, ninguém se impõe à primeira vista no meio novo que elege para viver. Era despido de maneiras espalhafatosas e de expansões retóricas. De uma irreverência temperada de humour. Mas nos olhos ressaltados e tristes, no seu talhe de toureiro e na máscara de contemplativo – algo se exprimia que era um misto de revolta, docura e gosto de viver. Com as próprias mãos ilustrou, imprimiu e distribuiu de graça A Sereia, um caderninho que (leia-se agora no imperfeito do indicativo) “não pretende, não espera nem pede nada. Quer apenas falar um pouco de poesia”.

Não chegaram a dez os números prometidos, porque o poeta morreu antes da hora, como antes da hora morrem sempre aqueles que amam a vida e de quem se pode esperar mais em benefício da vida.

Em Segalá o espírito libertário sustentado pela amizade dos poetas livres de seu e de outros países não se revestia de asperezas sarcásticas, senão de segura confiança na vitória final dos homens contra a estupidez e a opressão. A atração do humano diluiu-lhe em poesia a vocação racial “a favor do contra”, traço heróico de seu povo. E em vez de bombas, a sua “Verônica” produziu sereias. Mais interessado em enquadrar com bom gosto e beleza a poesia dos outros, esqueceu a própria. E num dia de desesperadora canícula, triste dia para os seus amigos, para a poesia e para as artes gráficas – esqueceu-se também de viver.

Originalmente publicado em Para Todos, Rio de Janeiro, março de 1958, p. 9, in A arte de viver e outras artes. Rio de Janeiro: Graphia, 1994, p. 270-271.

sexta-feira, 14 de março de 2008

Encontros de pesquisadores da área multidisciplinar de estudos do livro e da leitura

Convite aos colegas para participação

1. Evento específico para pesquisadores da área multidisciplinar de estudos do livro e da leitura

Colóquio Internacional:
Arquivos, Memória Editorial e História da Vida Literária
(Patrocínio: Programa Petrobrás Cultural)
II SEMINÁRIO BRASILEIRO SOBRE LIVRO E HISTÓRIA EDITORIAL
Estes eventos, previstos inicialmente para 3 a 7 de novembro de 2008, foram adiados.
Sua nova data (ainda a confirmar) será de 11 a 15 de maio de 2009.
Local: Rio de Janeiro
Realização: Universidade Federal Fluminense / Instituto de Arte e Comunicação Social / Programa de Pós-graduação em Comunicação / LIHED
Mais informações em breve
Contato: anibalbraganca@gmail.com


2. Eventos acadêmicos que incluem a área multidisciplinar de estudos do livro e da leitura

IV Colóquio do PPRLB: Relações Luso-Brasileiras: D. João VI e o Oitocentismo
Data limite para envio de trabalhos: 31 de março de 2008
Data da realização: 17, 18 e 19 de setembro de 2008
Real Gabinete Português de Leitura do Rio de Janeiro
Centro de Estudos
Pólo de Pesquisa sobre Relações Luso-Brasileiras (PPRLB)
Rio de Janeiro
Inscrições e outras informações: http://www.realgabinete.com.br/
E-mail: gabinete@realgabinete.com.br
Tels: (21) 2221.3138 e 2221.2960


VIII Encontro dos Núcleos de Pesquisa Intercom
Reunião do Núcleo Produção Editorial
IV Intercom Júnior (iniciação científica)
Data limite para envio de trabalhos: 18 de abril de 2008
Data da realização: 5 e 6 de setembro de 2008
INTERCOM 2008
XXXI Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação
Natal (Rio Grande do Norte)
Consulte no Portal da Intercom a Chamada de trabalhos e a Programação preliminar:
http://www.intercom.org.br/congresso/2008/programacao.shtml
http://www.intercom.org.br/congresso/2008/chamada.shtml

sábado, 8 de março de 2008

No Dia Internacional da Mulher, Florbela Espanca

Neste Dia Internacional da Mulher, hoje, serenamente, rara leitora, emergem em mim nomes, corpos e almas de mulheres que me deram a vida que sou e vivo. Da mãe às netas, passando por companheiras de vida e de trabalhos, esposas, amantes, namoradas, filhas, tias, irmãs, amigas, paixões: ardentes e platônicas, imaginárias, juvenis e maduras, calmas e procelosas, tristes e felizes - ai de mim, tantas!, todas me compõem: sois em mim, mulheres de minha vida.
E acaso serei em vós?

Ave, mulher!, com os belos versos de Florbela Espanca.


O nosso livro

A A.G.

Livro do meu amor, do teu amor,
Livro do nosso amor, do nosso peito...
Abre-lhe as folhas devagar, com jeito,
Como se fossem pétalas de flor.

Olha que eu outro já não sei compor
Mais santamente triste, mais perfeito
Não esfolhes os lírios com que é feito
Que outros não tenho em meu jardim de dor!

Livro de mais ninguém! Só meu! Só teu!
Num sorriso tu dizes e digo eu:
Versos só nossos mas que lindos sois!

Ah! meu Amor! Mas quanta, quanta gente
Dirá, fechando o livro docemente:
"Versos só nossos, só de nós os dois"!..."


Fanatismo

Minh'alma, de sonhar-te, anda perdida
Meus olhos andam cegos de te ver!
Não és sequer razão do meu viver,
Pois que tu és já toda a minha vida!

Não vejo nada assim enlouquecida...
Passo no mundo, meu Amor, a ler
No misterioso livro do teu ser
A mesma história tantas vezes lida!

"Tudo no mundo é frágil, tudo passa..."
Quando me dizem isto, toda a graça
Duma boca divina fala em mim!

E, olhos postos em ti, digo de rastros:
"Ah! Podem voar mundos, morrer astros,
Que tu és como Deus: Princípio e Fim..."


Os versos que te fiz

Deixa dizer-te os lindos versos raros
Que a minha boca tem pra te dizer!
São talhados em mármore de Paros
Cinzelados por mim pra te oferecer.

Têm dolência de veludos caros,
São como sedas pálidas a arder...
Deixa dizer-te os lindos versos raros
Que foram feitos pra te endoidecer!

Mas, meu Amor, eu não tos digo ainda...
Que a boca da mulher é sempre linda
Se dentro guarda um verso que não diz!

Amo-te tanto! E nunca te beijei...
E nesse beijo, Amor, que eu te não dei
Guardo os versos mais lindos que te fiz!

In Sonetos, de Florbela Espanca, S. Paulo: Difel, 1983.

sexta-feira, 7 de março de 2008

Bicentenário da chegada ao Brasil da Família Real




Aspecto da platéia do Teatro Municipal do Rio de Janeiro, tendo no centro do Balcão Nobre a presença do presidente de Portugal, Aníbal Cavaco e Silva, e do governador do estado do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral (1); parte do pano de boca do Teatro Municipal do Rio de Janeiro, obra de Eliseu Visconti, recentemente restaurada, tendo ao centro a imagem de D. Pedro II (2); Imagem do palco com os artistas do espetáculo, tendo ao centro, Isabel Salgueiro (3). Fotos de Aníbal Bragança. Podem ser reproduzidas desde que sem fins comerciais e que seja citada a fonte.
Teresa Salgueiro & Septeto João Cristal apresentaram hoje, 6 de março, o concerto "Você e eu" no palco do belo Teatro Municipal do Rio de Janeiro, promovido pelo governo português no âmbito das comemorações do bicentenário da chegada da Família Real ao Brasil, certamente o marco inicial da fase que amadureceu o nascimento da nação brasileira.
Foi um excelente começo artístico de uma série de comemorações que se estenderão até ao fim deste ano. A vocalista do lamentavelmente desfeito conjunto Madredeus, certamente o maior acontecimento da música portuguesa nas últimas décadas, mostrou que sua voz doce e vigorosa é de múltiplas potencialidades. O concerto, quase todo uma homenagem à música popular brasileira, foi de alto nível em qualidade e emoção. Algumas interpretações, como as das clássicas Inútil paisagem, Valsinha e Se todos fossem iguais a você, além da música que dá título ao concerto, Eu e você, de Vinícius e Carlos Lyra, poderão incluir-se entre as melhores das tantas que já se registraram, de outros grandes artistas brasileiros.
Houve apenas duas músicas do cancioneiro ibérico no espetáculo. Foi pena. A voz admirável de Teresa Salgueiro expressa ainda melhor a alma portuguesa.
Os músicos do Septeto e os arranjos de João Cristal enriquecem o concerto. Este teve na assistência o presidente de Portugal, Aníbal Cavaco e Silva, muito aplaudido pelos presentes no Teatro quase inteiramente lotado, e também o governador Sérgio Cabral.
Foi um privilégio estar nesta noite neste lugar!



quinta-feira, 6 de março de 2008

Camilo Pessanha (Coimbra, 07/09/1867 – Macau, 01/03/1926)


San Gabriel
(no quarto centenário do descobrimento da Índia)


I

Inútil! Calmaria. Já colheram
As velas. As bandeiras sossegaram
Que tão altas nos topes tremularam...
Gaivotas que a voar desfaleceram.

Para quê remar mais? Emudeceram!
Velhos ritmos que as ondas embalaram.
Que cilada que os ventos nos armaram!
A que foi que tão longe nos trouxeram?

San Gabriel, arcanjo tutelar,
Vem outra vez abençoar o mar,
Asas de cisne e o vasto saio azul...

À prova vem! À conquista final!
Freme de luz! Em álgido cristal, irreal,
Fulgente, argenteo Cruzeiro do Sul...


II

Vem conduzir as naus, as caravelas,
Outra vez, pela noite, na ardentia,
Avivada das quilhas. Dir-se-ia
Irmos arando em um torrão de estrelas.

Outra vez vamos! Côncavas as velas,
Cuja brancura, rútila de dia,
O luar dulcifica, e anestesia
O nosso olhar, que nos doía ao vê-las.

Proas ao Sul! Ao Além! À nebulosa
Que do horizonte vapora, luminosa
E a noite lactescendo, onde, quietas,

As velhas almas lugem namoradas...
– Almas tristes, severas, resignadas,
De guerreiros, de santos, de poetas.



Viola chinesa
(a Wenceslau de Moraes)


Ao longo da viola morosa
Vai adormecendo a parlenda
Sem que o meu coração se prenda
Na lengalenda fastidiosa...

Sem que o meu coração atenda,
Enquanto, nasal, minuciosa,
Ao longo da vida morosa,
Vai adormecendo a parlenda.

Dormita... porém não repousa
O canto, sem que ele o compreenda,
Faz que as asitas distenda
Numa vibração dolorosa,

Ao longo da viola morosa...


[sem título]
A João Vasco
(Na ceia da noite de despedida para uma longa separação)

A boémia não morreu.
Eis-nos com os cabelos brancos;
E, todavia, os barrancos
Do seu destino, e do meu,

Se nos quebraram as pernas,
As asas não as partiram,
Em que altos sonhos deliram
As nossas almas eternas.

Depois de tantos baldões,
Devera ter-se ido a fé:
Temos tido pontapé
Das mais caras ilusões...

E não morre a mocidade!
Após enganos, enganos...
Pois só daqui a cem anos
Choraremos de saudade?

In A poesia de Camilo Pessanha. Edição crítica de Carlos Morais José e Rui Cascais. Macau ; Coimbra: Instituto Internacional de Macau ; Câmara Municipal de Coimbra, 2004.
Meus agradecimentos ao amigo Wagner Neves da Rocha e às sras. Maria José Miranda, chefe da Divisão de Biblioteca e Arquivo Histórico da Câmara Municipal de Coimbra e Lídia Cunha, coordenadora da secretaria geral do Instituto Internacional de Macau pela oportunidade que, cada qual a seu jeito, criaram para que conhecesse um pouquito mais da poesia de Camilo Pessanha.