terça-feira, 3 de julho de 2007

A leveza na literatura, segundo Italo Calvino

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Quando iniciei minha atividade literária, o dever de representar nossa época era um imperativo categórico para todo jovem escritor. Cheio de boa vontade, buscava identificar-me com a impiedosa energia que move a história de nosso século, mergulhando em seus acontecimentos coletivos e individuais. Buscava alcançar uma sintonia entre o espetáculo movimentado do mundo, ora dramático ora grotesco, e o ritmo interior picaresco e aventuroso que me levava a escrever.

Logo me dei conta de que entre os fatos da vida, que deviam ser minha matéria-prima, e um estilo que eu desejava ágil, impetuoso, cortante, havia uma diferença que eu tinha cada vez mais dificuldade em superar. Talvez que só então estivesse descobrindo o pesadume, a inércia, a opacidade do mundo – qualidades que se aderem logo à escrita, quando não encontramos um meio de fugir a elas.

Às vezes, o mundo inteiro me parecia transformado em pedra: mais ou menos avançada segundo as pessoas e os lugares, essa lenta petrificação, não poupava nenhum aspecto da vida. Como se ninguém pudesse escapar ao olhar inexorável da Medusa.

O único herói capaz de decepar a cabeça da Medusa é Perseu, que voa com sandálias aladas. Perseu, que não volta jamais o olhar para a face da Górgona, mas apenas para a imagem que vê refletida em seu escudo de bronze. Eis que Perseu vem ao meu socorro até mesmo agora, quando já me sentia capturar pela mordaça de pedra – como acontece toda vez que tento uma evocação histórico-autobiográfica.

Melhor deixar que meu discurso se elabore com as imagens da mitologia. Para decepar a cabeça da Medusa sem se deixar petrificar, Perseu se sustenta sobre o que há de mais leve, as nuvens e o vento, e dirige o olhar para aquilo que só pode se revelar por uma visão indireta, por uma imagem capturada no espelho.

Sou tentado de repente a encontrar nesse mito uma alegoria da relação do poeta com o mundo, uma lição do processo de continuar escrevendo.

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Ítalo Calvino, “Leveza”, in Seis propostas para o próximo milênio. Trad. de Ivo Barroso, Cia. das Letras, S. Paulo, 1990, p. 15-6.

O trecho acima foi retirado do início do texto da conferência sobre Leveza que Calvino preparou para apresentar nas suas Lições Americanas, que nunca chegou a proferir. Convidado pela Universidade de Harvard, em 1984, para oferecer um ciclo de seis conferências, faleceu em 1985, em Siena, na Itália. Deixou prontos os textos de cinco: Leveza, Rapidez, Exatidão, Visibilidade, Multiplicidade. A que seria a última, Consistência, Calvino havia deixado para preparar em Harvard. Ficou o legado literário de uma dos maiores escritores do século XX, uma referência nos caminhos da literatura do terceiro milênio.

2 comentários:

Anônimo disse...

Prezado Anibal!
Gosto muito de sua página e sempre a leio
Hoje adorei os comentários sobre Ítalo Calvino
Sinto saudades de ler mais alguma coisa de Miguel Coelho
Um abraço
Angela
(angelamaria50@gmail.com)

Anônimo disse...

Adorei os comentarios sobre leveza, mas gostaria que abordasse as outras propostas visibilidade, multiplicidade, exatidão, rapidez voltadas para a literatura