sexta-feira, 6 de julho de 2007

Emerson: Goethe, o escritor

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A natureza exige um narrador. Todos os fenômenos preocupam-se em escrever a sua história. O planeta, o calhau, são seguidos de sua sombra. O penedo, rolando, deixa as suas arranhaduras sobre a montanha; o rio, o seu leito no solo; o animal, seus ossos no estrato; o feto e a folha, seu modesto epitáfio na hulha. A gota que cai, esculpe-se na areia ou na pedra. Nenhum pé calca a neve, ou percorre o solo, sem que imprima, em caracteres mais ou menos duráveis, uma descrição da sua marcha.

Cada ato do homem inscreve-se nas memórias dos seus companheiros, nos seus próprios costumes e sobre o seu próprio rosto. O ar está cheio de sons, o céu, de sinais, a terra não é senão memorando e assinaturas, e cada coisa está coberta de alusões, que falam aos inteligentes.
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No homem, a memória é uma espécie de espelho que, tendo recebido a imagem dos objetos que o rodeiam é tocado de um sopro de vida, e os dispõe numa nova ordem. Os fatos passados não permanecem aí inertes, porém uns se apagam, e outros brilham de tal sorte que, subitamente, vemos um novo quadro, composto de ações memoráveis.

O homem coopera. Aprecia comunicar, e o que tem para dizer carrega como um peso sobre o coração até que dele se liberte. Contudo, além do prazer universal da conversação, alguns homens nascem em quem o poder para essa segunda criação se exalta e sublima. São os homens nascidos para escrever.

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O pensador é o homem dos séculos, mas é necessário também que ele deseje como os outros homens estar em bons termos com os seus contemporâneos. Para as pessoas superficiais existe, porém, certo ridículo de que são vítimas os literatos ou letrados, que não é de nenhuma importância, a menos que o letrado lhe dê atenção.

Neste país, a força da conversação e da opinião pública, recomenda o homem prático, e a porção sólida da comunidade é nomeada em todos os círculos com um respeito significativo.

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Contudo o escritor não ocupa, de modo nenhum, posição preponderante entre nós. Atribuo-lhe a culpa. Um livro passa por um livro. Houve tempo em que o escritor era uma pessoa sagrada, escrevia Bíblias, os primeiros hinos, os códigos, as epopéias, os cantos trágicos, os versos sibilinos, os oráculos da Caldéia, as sentenças da Lacônia, gravadas nos muros dos templos. Cada palavra era verdadeira e despertava as nações para uma vida nova. Escrevia sem ligeireza, e sem escolha. Cada palavra estava gravada diante dos seus olhos, sobre a face da terra e do céu, e o sol e as estrelas não eram senão letras do mesmo sentido.

Como pode, porém, um homem ser honrado, quando não se honra a si mesmo, quando se perde no vulgo, quando não é mais o legislador, mas sim o caluniador, curvando-se à opinião inconstante dum público ignorante e versátil; quando lhe é preciso apoiar como um advogado trêfego qualquer mau governo, ou que lhe é preciso vociferar todo um longo ano, na oposição, ou escrever crítica convencional, ou compor romances dissolutos, ou, em todo caso, escrever sem idéia, e sem recorrer, dia e noite, às fontes de inspiração.

Pode-se fornecer alguma refutação a essas questões percorrendo a lista dos gênios literários da nossa época. Entre eles, não se oferece a nenhum espírito nome mais instrutivo que o de Goethe, para representar os deveres e os poderes do letrado ou escritor.
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Trecho (p. 211s) de Homens representativos, de Ralph Waldo Emerson (1803-1882), lançado em Londres (1849) e em Boston (1850) e que se tornou um clássico do pensamento americano. São pequenas biografias de alguns homens notáveis, Platão, Swedenborg, Montaigne, Shakespeare, Napoleão e, finalmente, Goethe, o escritor, autor de Os sofrimentos do jovem Werther, Os anos de aprendizado de Wilhem Meister, Fausto e outras obras-primas da literatura alemã.

Num tempo em que ficamos órfãos de referências que nos possam orientar e inspirar, diante das tormentas e vicissitudes do contemporâneo, mesmo com todo o seu idealismo, uma obra como esta talvez seja uma proveitosa leitura para nossas reflexões e práticas. O que acha rara ou raro leitor? Será nostalgia deste neoblogueiro?

A edição, de 1967, é da também saudosa Coleção Clássicos de Bolso, da Edições de Ouro, um projeto que está merecendo a atenção dos pesquisadores de nossa história editorial, pelo excelente serviço que prestou à cultura brasileira. A tradução, prefácio e notas são de Alfredo Gomes.

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