segunda-feira, 16 de julho de 2007

Carlos Drummond de Andrade (31/10/1902-17/08/1987)

Soneto da buquinagem

Buquinemos, amiga, neste sebo.
A vela, ao se apagar, é sebo apenas,
e quero a meia-luz. Amo as serenas
Angras do mar dos livros, onde bebo

– álcool mais absoluto – alheias penas
consoladas na estrofe, e calmo, e gebo,
tiro da baixa estante sete avenas
em sete obras que pago e que recebo.

Amiga, buquinemos, pois é morta
Inês de antigos sonhos, e conforta
no tempo de papel tramar de novo

nosso papel , velino, e nosso povo
é Lucrécio e Villon, velhos autores,
aos novos poetas muito superiores.

In Viola de bolso, novamente encordoada. Rio: José Olympio, 1955, p. 27.

Nobre Rua São José

A rua é ainda egrégia e simpática. Tudo se vem fazendo por transforma-la em ponto de estacionamento de automóveis, mas a sombra de Ruy Barbosa, a de João Ribeiro, de poetas antigos, sábios, professores, bibliófilos, estudantes, gente rica e gente pobre, com amor à leitura, que por lá buquinou durante anos e anos, parece freqüenta-la ao jeito das sombras: discretamente, na memória dos que gostam de evocar, na saudade de alguns sobreviventes da velha geração de caixeiros, um pouco na poeira das estantes, que as estantes veneráveis não devem ser luzidias. Há também, esparsas, memórias de leiloeiros e antiquários.

Os “sebos” foram rareando, freqüentadores assíduos se despediram para o Caju e o São João Batista, a cidade ensaio novos hábitos, ou simplesmente perdeu velhos e não teve jeito de adquirir outros. Onde reinava o velho Quaresma e depois o velho Matos, há hoje latas de comestíveis. A “Principal”, a “Acadêmica”, o J. Leite saíram da paisagem, emigrando ou desvanecendo-se. Um lado inteiro da rua desapareceu, e foi como se arrancassem metade do tronco a um corpo vivo. Mas, no outro meio-feio, o sobrada da velha Briguiet se mantém fiel a seu destino de casa de livros. Com outro nome e outros ocupantes, o espírito literário não desertou aquelas paragens. Um menino, por assim dizer crescido na Rua São José, ali está hoje, homem feito, e a este não possível demolir nem convencer de que deve negociar em política, importações ou apartamentos. Carlos Ribeiro mantém e revigora, quase sozinho, o espírito da gloriosa Rua São José, que é uma universidade a seu modo: junto às pilhas de livros, sabedores de coisas filosofam ou pontificam. Mocinhas supõem comprar romances, quando na realidade estão se provendo de noções da eterna e tenebrosa ciência de amar; (...) não flatam nem as presses universitaires, pois a rua edita desde manuais de macumba até estudos eruditos; e há sempre uma idéia, um projeto, um traço intelectual no ar, um traço que não quer perder-se e reage contra a burrificação geral da vida carioca.

Mas essa rua é também uma praia, aonde vão dar os volumes de bibliotecas que naufragaram. Vêm de mistura os mestres do pensamento e aquelas tímidas obrinhas de principiantes, que o destinatário nem chegou a abrir. O livreiro recolhe esses destroços e os reanima, pondo-os de novo em circulação. (...)


O grande poeta estrangeiro oferece seu cântico ao grande poeta nacional e este, de alma doadora por natureza, o passa a um terceiro poeta, que, premido pela dura circunstância (e quem ainda não desfez ou pensou em desfazer sua biblioteca, num dia negro?) o lança à correnteza da Rua São José, onde um quarto poeta o resgata – por quanto tempo? Assim a poesia circula como um facho levado por mãos que a prezam, e alguma coisa, no abismo, se salvará.

In Fala, amendoeira, Rio: José Olympio, 1957, p. 37-40.

O sebo

(...)
Para onde foram os livros usados, os que tinham na capa esse visgo publicitário, as brochuras encardidas, as encadernações de pobre, os folhetos, as revistas do tempo de Rodrigues Alves? Tudo isso também é gente, na cidade das letras, e, como gente, ninho de surpresas: no mar de obras condenadas ao esquecimento , pesca-se às vezes o livrinho raro, não digo raro de todo, pois o faro do mercador arguto o escondeu atrás do balcão, e destina-o a Plínio Doyle, ao Mindlin paulista ou à Library of Congress, que não dorme no ponto... mas, pelo menos, o relativamente raro, sobretudo aquele volumeco imprevisto, que não andávamos catando, e que nos pede para tira-lo dali, pois está ligado a circunstâncias de nossa vida: operação de resgate, a que procedemos com alguma ternura. (...)

A inenarrável promiscuidade dos sebos! Dante em contubérnio com o relatório do Ministro da Fazenda, os eleatas junto do almanaque de palavras cruzadas, Tolstoi e Cornélio Pires, Mandrake e Sóror Juana Inés de la Cruz... Nenhum deles reclama. A paz é absoluta. O sebo é a verdadeira democracia, para não dizer: uma igreja de todos os santos, inclusive os demônios, confraternizados e humildes. Saio dele com um pacote de novidades velhas, e a sensação de que visitei, não um cemitério de papel, mas o território livre do espírito, conta o qual não prevalecerá nenhuma forma de opressão.

In O poder ultra-jovem e mais 79 textos em prosa e verso. 2a. ed. Col. Sagarana, n° 96, Rio: José Olympio, 1973, p. 127-8

Carlos Drummond de Andrade deixou-nos em sua obra testemunhos de sua relação com as leituras, os livros e as livrarias. Estes são apenas alguns deles que escolhemos para lembrar a você, raro ou rara leitora, que estamos quase fazendo vinte anos sem sua belíssima presença, discreta, generosa e genial. E que, rara ou raro leitor há de concordar comigo, sua obra continua com todo o poder de encantamento, contrariando um dos aforismos que publicou no livro O avesso das coisas ao dizer que, como os homens, as obras literárias minguam com o tempo.
Viva Drummond, para sempre! Ler e reler Drummond... que tal ir à sua estante, à livraria ou sebo mais próximo e resgatar, com sua leitura, algumas de suas páginas imortais?

2 comentários:

Wilton Chaves disse...

Caro Aníbal,Parabéns!
Muito interessante o post sobre Drummond, principalmente pelos temas que você aborda, o mundo do livro.
Você oferece dicas no final do artigo, o que é bem estimulante e serve de fio condutor para futuras leituras.
Acho uma boa referência as citações das obras de Drummond, uma via importante para aproximarmos da vida literária de nosso país. Há mais livros, como você sabe que trata de livros e livrarias, como por exemplo: Impurezas do Branco, onde há um poema em homenagem a livraria Leonardo da Vinci, um outro de crônicas como O Observador no Escritório, que menciona José Olimpio, Livraria Quaresma, Livraira Garnier, enfim, um rico livro do nosso grande poeta.Viva Drummond!

Aníbal Bragança disse...

Caro Wilton,
seu conhecimento sobre a área é muito rico e suas dicas são ótimas.
Além do que você falou o Drummond tem também um poema sobre a Francisco Alves em Belo Horizonte.
Voltaremos a ele, sem dúvida.
Obrigado.
E devemos, todos nós, raros leitores visitar o blog do Wilton, Quitanda do Chaves, ótimo.
Um grande abraço,
Aníbal