quarta-feira, 20 de junho de 2007

A leitura e suas práticas no Brasil, por Gilberto Amado (em 1918)

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Um livro! Uma campanha! Mas onde foi parar o teu juízo?
Em primeiro lugar, parece que esqueceste que o Brasil é um vasto país da América do Sul em cuja população existem ainda de oitenta e cinco a noventa por cento de analfabetos. Dos restantes quinze por cento que se supõe saber ler, pois não temos nenhuma estatística, demos cinco por cento para o interior e fiquemos com dez para as capitais, inclusive o Rio e S. Paulo. Espalham-se de Manaus a Porto Alegre, mantendo entre si um nexo afrouxado pela distância e pela falta de comunicações.

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Considerando agora que destes dez por cento da população que vive nas capitais, dois terços não lêem senão jornais: são caixeiros, pequenos empregados, auxiliares, homens de vista curta, cuja atividade mental não transcende da estreiteza habitual das suas tarefas quotidianas, vemos que não resta senão um terço, que se compõe de funcionários públicos, jornalistas, políticos, advogados, médicos, engenheiros, comerciantes, agricultores, homens de negócios, o que se chama enfim as classes dirigentes do país, a minoria que governa ou, para falar mais pernosticamente – a elite.

Nessa elite é que se devem encontrar as centenas ou milhares de pessoas que lêem livros. Devo dizer-te que em geral lêem pedaços de livros, e de livros que os interessam, livros de a-propósito.

O deputado, por exemplo, tem que escrever na comissão de que faz parte na Câmara um parecer sobre o Crédito Agrícola. Vai à livraria e encomenda todos os livros que sobre o assunto já foram publicados na Bélgica, na França, ou traduzidos do alemão e do inglês.


Estende-os numa grande mesa e começa o trabalho. Quinze dias depois está pronto. Nele são citados quatrocentos e trinta e dois autores, segundo as indicações dos quatro volumes principais. O deputado recebe as felicitações dos colegas e os aplausos da imprensa, depois de lido o parecer, que é publicado com o retrato do autor em todo o país. Fecha depois os livros, coloca-os em bonitas estantes expostas ao olhar dos amigos e nunca mais os abre.

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Leitura, atividade intelectual como a desse deputado que tomei para exemplo, é a da maioria da pequena parte da população que lê. É assim que faz toda a gente na pressão de uma tarefa imediata a cumprir, no desempenho angustioso de um propósito inadiável, leitura rápida, sumária, expedida.

E fora desta, os lazeres multiplicados da vida mortificante num clima exaustivo não lhes deixam tempo senão para jornais, livros leves, romances policiais, assuntos de aplicação fácil que não tomem a atenção toda. Uma obra de idéias dizendo com os problemas morais ou sociais que interessam à humanidade contemporânea, poderia atrair quando muito cinco leitores sinceros em todo o Brasil, (...)

Campanhas aqui, meu amigo, num meio destes, com tão poucas letras, por intermédio de livros, estás a ver que é impossível empreendê-las. (...)


Se uma empresa pudesse ser feita no Brasil pela palavra falada ou escrita o flagelo das secas não mais existiria no Ceará.

In “Dos homens chamados “práticos” e a sua influência no Brasil” (1918), Gilberto Amado, Grão de areia e estudos brasileiros. Rio de Janeiro: José Olympio, 1948, Col. Obras de Gilberto Amado, vol. II, p. 132-135.

Trazemos a você, rara ou raro leitor, este registro sobre como era vista a situação da leitura e de suas práticas em nosso país, na chamada República Velha, a partir do olhar de um dos intelectuais brasileiros mais respeitados em seu tempo.

Passaram-se quase nove décadas. Houve mudanças – a maior talvez tenha sido a ampliação da escolarização da infância que reduziu bastante os índices de analfabetismo absoluto ou então o número de assessores parlamentares para poupar os deputados de preparem eles próprios seus pareceres – e permanências, como a formação de bibliografias e a leitura a-propósito, esta agora certamente feita com muito mais intensidade e cada vez menos nos livros e mais na Internet.

E a seca no Ceará, claro.

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Gilberto Amado (7/5/1887-27/8/1969) foi jornalista, professor, político, diplomata e escritor. Em 1915, foi eleito deputado federal por Sergipe. Nos últimos anos da República Velha, exerceu mandato no Senado, até encerrar-se a sua carreira política com a Revolução de 1930. Em 1934, iniciou sua carreira na diplomacia. Eleito em 3 de outubro de 1963 para a Academia Brasileira de Letras.
Mais informações:
http://www.academia.org.br/

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