sábado, 5 de maio de 2007

Leitura nas Confissões de Santo Agostinho (354-430)

Confissões VI: O trabalho de Ambrósio

(...) No pouquíssimo tempo em que não estava com eles, [Ambrósio} refazia o corpo com o alimento necessário, ou o espírito com a leitura.

Mas, quando lia, os olhos divagavam pelas páginas e o coração penetrava-lhes o sentido, enquanto a voz e a língua descansavam. Nas muitas vezes em que me achei presente – porque a ninguém era proibida a entrada, nem havia o costume de lhe anunciarem quem vinha –, sempre o via ler em silêncio e nunca doutro modo.

Assentava-me e permanecia em longo silêncio – quem é que ousaria interrompê-lo no seu trabalho tão aplicado? –, afastando-me finalmente. Imaginava que, nesse curto espaço de tempo, em que, livre do bulício dos cuidados alheios, se entregava a aliviar a sua inteligência, não se queria ocupar de mais nada. Lia em silêncio, para se precaver, talvez, contra a eventualidade de lhe ser necessário explicar a qualquer discípulo, suspenso e atento, alguma passagem que se oferecesse mais obscura no livro que lia. Vinha assim a gastar mais tempo neste trabalho e a ler menos tratados do que desejaria. Ainda que a razão mais provável de ler em silêncio poderia ser para conservar a voz, que facilmente lhe enrouquecia. Mas, fosse qual fosse a intenção com que o fazia, só podia ser boa, como feita por tal homem. (...)

In Santo Agostinho, Confissões, trad. de J. Oliveira Santos, S.J., e A. Ambrósio de Pina, S.J. S. Paulo: Abril, 1973, 1a. ed., p. 111. Coleção Os Pensadores, v. VI.

Oferecemos a você, rara ou raro leitor, um pequeno excerto da obra de Santo Agostinho muito citado pelos historiadores da leitura quando se querem referir aos primeiros registros da leitura feita em silêncio, tão comum hoje que parece ter sido sempre assim, mas que durante séculos e em muitas práticas sociais em diferentes culturas foi feita em voz alta, para proveito do próprio leitor, por vezes, também, do autor do texto, de discípulos ou de condiscípulos, de quem não sabia ler etc. Na época Agostinho sentiu necessidade de justificar a prática de seu mestre.

Post-scriptum:

Santo Agostinho nasceu em 13 de novembro de 354, em Tagaste (hoje Souk-Ahras), na Argélia; morreu em 28 de agosto de 430, em Hipna (hoje Annaba, na Argélia). Cresceu no norte da África colonizado por Roma e foi educado em Cartago. Foi professor de retórica em Milão, em 383. Converteu-se ao cristianismo pela pregação de Ambrósio de Milão. Em 396 foi nomeado bispo assistente de Hipona (com o direito de sucessão em caso de morte do bispo corrente), e permaneceu como bispo de Hipona até sua morte em 430, durante o cerco de Hipona pelos Vândalos. No mesmo volume da coleção Os Pensadores citado está incluído o belo livro de Santo Agostinho, De magistro (Do mestre), que se inicia com o capítulo "Finalidade da linguagem", seguido de outros como, "O homem mostra o significado das palavras só pelas palavras", "Se devemos preferir as coisas, ou o conhecimento delas, aos seus sinais", "Se é possível ensinar algo sem sinais. As coisas não se aprendem pelas palavras" etc. Animou-se a procurar o volume no seu sebo preferido?

Comece a ler mais de e sobre Santo Agostinho na Wikipédia - a enciclopédia livre -, de onde extraímos as referências acima:
http://pt.wikipedia.org/wiki/Agostinho_de_Hipona

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